quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O pai possível - Rogério Pereira


O texto abaixo combina recursos que contextualizam o pai na sociedade atual: menos o detentor da palavra final e mais o partícipe de uma conversa; menos o herói de corpo de aço ou o provedor - afinal não é "bom para ganhar dinheiro" - e mais o homem capaz de confessar seus medos e assumir a possibilidade de enveredar pelo sonho das aventuras espaciais. O narrador perdeu ou refutou um manual ultrapassado? Não parece também querer adotar outro, mas sim inventar-se a cada dia. São atitudes compatíveis com um contexto em que a justiça dá cada vez mais a pais e mães a guarda compartilhada dos filhos (Marcella Lopes Guimarães. In: Capítulos de história: o trabalho com fontes).

E quando você, minha filha, descobrir que eu não uso capa vermelha, não sei voar, meu corpo não é de aço e, portanto, estou longe de ser infalível? Este dia chegará em breve. Num simples piscar de olhos ao melhor estilo Jeannie é um gênio, seremos outros. Talvez você não se decepcione. Talvez, no pacto que engendramos sem maior esforço, a descoberta lhe percorra o corpo em silêncio. Será assim: sem notar que a infância já lhe abandonou a agitação dos dias, você terá diante dos olhos outro homem. Serei eu, posso assegurar, teu pai, em cujo reflexo estará o bebê de rosto redondo e olhos azul imensidão. Mas aí, neste exato momento, terei de confessar: não, eu nunca fui o dublê do Clark Kent, apesar dos eternos óculos e da maneira desajeitada ao caminhar. E, quem sabe, a sombra na parede apenas descortine a esquálida figura de um cavaleiro solitário. Chegará a hora de descobrir que o nosso reino encantado tem pouquíssimos metros quadrados. E se não pagarmos água, luz e condomínio, podemos perdê-lo para outra família real. É preciso lhe contar algumas verdades.
Não, o nosso time nem sempre vence. Na verdade, quase sempre perde. Raramente, empata. Eu não inventei aquela história de que você tanto gosta. Não sou autor de nenhuma história muito original. Todas são apenas um mosaico, um recorte, um apanhado torto das leituras que me acompanham. Não, eu nunca li aquele livro com mais de mil páginas que fica na sala. Um dia, te explico por que ele ainda segue ali. Tampouco, sei de cor os versos de Pessoa. Acho que não sei nenhum verso de cor. Minha memória, você descobrirá, é péssima — um queijo catarinense de quinta categoria. Eu nunca marquei um gol inesquecível. Fiz, confesso, meia dúzia de gols bem sem-graça. Quando chego em casa às terças-feiras à noite, trago na ponta da língua a resposta: “Vencemos; fiz dois gols”. E você apenas sorri, conivente em excesso com as minhas ficções suburbanas.
Não dei voltas ao redor do mundo. Nunca vi um leão de perto. Não conheço elefantes. Não cruzei os mares atrás de baleias gigantes. Jamais escalei uma montanha de gelo e, tampouco, no topo coloquei uma bandeira minúscula. Todas as nossas aventuras estão aprisionadas naquela coleção de capa colorida em seu quarto. Não sei muito bem o que diz aquele livro sobre sereias escrito em inglês, que você sempre me pede para ler. Sou péssimo em inglês. Não sei nada a respeito das orações subordinadas substantivas. Vivo com dúvidas sobre crase. Sempre consulto o dicionário antes de escrever a palavra “incógnita”. Tenho medo de ficar cego. Mas não me importo com a surdez. Na infância, tinha medo de escuro e poeira embaixo da cama. Agora, só tenho medo de escuro. E de altura. E de cores primárias. E de escada-rolante. E de rinocerontes na esquina. E de prego enferrujado. E de médico de plantão. E de…
Também não sou muito bom para ganhar dinheiro, fazer muitos amigos e ser famoso. Nunca inventei nenhuma receita gastronômica. Todos os poucos pratos que elaboro saem de um livrinho de bolso que escondo na última gaveta da pia da cozinha. Quando dão certo, bendigo a minha imensa capacidade criativa. Quando desandam, amaldiçôo a péssima edição que me guia diante das panelas. Tudo em silêncio, distante do teu olhar atento.
Mas é na distância que me entristeço, envelheço, choro. E, em breve, quando você me encontrar, descobrirá um atrapalhado super-herói, cujo manual de uso perdeu-se na longa viagem intergaláctica até aqui.
É jornalista e escritor. Em 2000, fundou o Rascunho. Vive em Curitiba (PR).

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