quinta-feira, 5 de junho de 2025

A rainha e o lixo


Tava ouvindo Villa-Lobos
num desses dias que começam errados
e terminam pior.
O Yamandu fazia o violão parecer uma mulher nua
dançando devagar, sem pressa,
como se o tempo dela fosse.
E eu ali,
largado no sofá esburacado,
com a cabeça cheia de coisa bonita
que nunca consegui criar.
Essas músicas me dão uma tristeza boa,
tipo lembrar de um amor de infância
ou da primeira vez que chorei com um filme.
É bonito, mas dói.
É tudo tão fora do meu alcance
que parece piada de mau gosto.
Liguei pra Lucy.
Ela tem esse jeito doce de quem não se importa,
e isso me salva de vez em quando.
Trouxe cerveja,
trouxe um baseado,
trouxe aquele olhar de quem já me viu pior.
Deitou do meu lado,
me chamou de poeta de boteco
e riu daquele meu jeito besta de tentar parecer forte.
Quis mostrar pra ela as Bachianas.
Quis dividir algo bonito, só isso.
Mas ela fez cara feia,
como se eu tivesse oferecido salada no lugar de pizza.
– Que música chata, amor.
Disse rindo,
sem maldade.
Eu calei.
olhei pra ela
e amei, mesmo assim.
Mesmo sem entender.
Mesmo sem querer.
Às vezes o amor é só isso:
querer que alguém goste das mesmas coisas
e continuar gostando
quando ela não gosta.
Ela dormiu com a cabeça no meu peito,
e eu fiquei ali,
ouvindo Villa-Lobos em silêncio,
como se fosse uma prece
ou um pedido de desculpas ao universo
por ter nascido tão comum.
No fim,
com ela ali,
até o lixo parecia ter poesia.
E eu,
rei de nada,
rei da sucata,
rei do que sobrou,
me senti um pouco mais homem,
um pouco mais feliz.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 27 de maio de 2025

O cachorrinho riu


 

Alongo as pernas feito um cachorro velho

que desperta depois de séculos hibernando

e me conecto com o mundo – bastou me acomodar

numa mesa no restaurante onde ela trabalha.

Ando paranoico: quando a vejo passar,

direciono minhas câmeras para o tamanho dos seus pés.

Aí, entorno umas doses de um licor pra lá de açucarado

feito com cachaça ordinária e me convenço de que ela,

nos seus 20 anos, é a síntese do amor que procuro.

Chega a ser cômica, naquele avental estiloso

da cozinha do restaurante, uns óculos suspeitos de quem

nunca teve problemas de visão e um sorriso de quem

se diverte em iludir e (até?) fisgar o cachorro velho.

Copo cheio, minha poesia desce redonda

e a imaginação não tem limites de velocidade

e o mundo agora anda no passo certo.

Todas as vezes que ela vinha para o restaurante, à tardinha,

pedalando sua bicicleta, ao cruzar por mim movia os lábios

num tímido Oi.

Hoje, ao se aproximar, me abanou e eu entrei em transe

e me senti O Messias – aquele – e me dirigi até a praça

e fiz um longo discurso aos cães de rua que por lá perambulavam.

Usando parábolas e tals, mostrei aos bichos quais os propósitos da vida

e também o que significa levar uma vida interessante.

A bronca foi intensa, e os irmãos uivaram pra valer,

ovacionando o meu discurso.

Foi aí que um cachorrinho se aproximou e eu vi, era o Arthur, o Bacana,

e ele riu... Sim, juro, o cachorrinho riu!

 

Ela é a juventude que eu preciso e que havia abandonado

num canto escuro de coração.

Brothers, não é proibido sonhar e imaginar – ao contrário.

Garanto-lhes que essa é a melhor bagagem que carregamos.

Na manhã seguinte, sóbrio, observei sua letra,

no pedido do x-salada que me preparou

com todo o amor que há no mundo.

Orgulhoso, mostrei pro Beiço e ele riu, pra lá de bêbado:

– Cadelão, isso é letra de homem!

 

Sorri. Talvez ele tivesse razão.

Talvez fosse mesmo letra de homem.

Talvez só provocação pra testar meu equilíbrio e reação.

Por isso, o retruquei: e daí?

O que importa, grande Beiço, é o gesto, o cuidado, o carinho que senti naquele lanche simples.

E neste instante percebo que o amor não tem forma, idade ou gênero

e se manifesta nos pequenos detalhes: num sorriso tímido,

num aceno de mão, numa caligrafia no pedido do x-salada.

Levantei o copo e bradei ao velho Beiço: brindemos ao inesperado:

– Às surpresas da vida e aos amores que nos encontram

quando menos esperamos!

E o velho Arthur riu.

 

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 22 de maio de 2025

Leminski, socorro!

 


 

Elas me chamam “Senhor Palermo”

e eu reclamo:

– Não tenho nem 70 anos!

Deponho as armas,

esqueço o rumo de casa

e me perco por esse mundo.

Nessas horas

só o Leminski me salva,

poetando em meus ouvidos:

 

"não discuto

com o destino

o que pintar

eu assino".

 

(B. B. Palermo)


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Dinheiro, pra quê?



Estávamos ali, afundados no calor gelatinoso do fim de tarde, com a garganta úmida de cerveja barata e a alma evaporando sonhos podres.

Beiço – meu irmão em delírio – confabulava, entre goles e devaneios.

E então, como num filme B, o carro dum messias capitalista estacionou do outro lado da rua – um importado que brilhava como o altar de um templo pagão.

Fingimos que não vimos. Ele também.

Afinal, o silêncio é a cortina de fumaça dos covardes.

O cara foi tudo o que mandaram ser: ótimo profissional, pai, cidadão modelo.

Um operário do discurso, um mártir de papel passado.

O Beiço riu, com o canto da boca:
Dinheirista de b*!, cuspindo o termo como se fosse casca de amendoim estragada.
E então filosofou, entre um gole e outro:
– Os caras passam a vida juntando grana, enfileirando imóveis, colecionando zeros como se fossem orgasmos.

E no fim, gastam tudo com filhos dopados e paranoicos, que cresceram sob a sombra longa da hipocrisia.

Pensei: pra quê tanto apego? Pra quê tanto tijolo, tanto plano de previdência,

tanta merda cinza empilhada como degraus rumo ao nada?

Disse ao Beiço que, se fosse rico, afundaria em luxo, corpos quentes e literatura nenhuma.
– Se tivesse grana – falei – eu comprava o prazer e queimava os papéis.
E ele – o canalha mais amável deste mundo – riu com seu brinde torto:
– Você, duro e desocupado, já escreve porra nenhuma. E ainda quer luxo?

Rimos. Sempre rimos, como dois palhaços bêbados num circo em chamas.

Daí a pouco ele me perguntou, sério como um túmulo vazio:
– Diz aí, meu brother, se não existissem as mulheres... dinheiro serviria pra quê?

Fiquei em silêncio. Lembrei de uma garota que me disse, com olhos de abismo:
Nunca tive dinheiro... até que baixei as calcinhas.
Era isso. A alma da economia moderna.

O Beiço emendou com uma citação da Mae West:
– Um centavo economizado é uma garota perdida! – e gargalhou, como se a frase fosse a chave de uma verdade oculta.

Foi então, como num soluço da lucidez, que me bateu um medo antigo.
O medo da morte, da velhice, da falência moral do mundo.
Falei de projetos – abrigos de velhos, contação de histórias para crianças com câncer – e ele quase cuspiu a cerveja.
Toma um porre, cara. Amanhã você esquece essa m*rda!

Eu sei. Meus planos não duram uma semana.
Meu compromisso com o futuro é o mesmo que tenho com a academia: nenhum.
Ainda assim, insisti:
– Vai que amanhã nasce um novo homem…
E ele, com olhos vermelhos de tanto riso e desespero:
– Jesus! Tá lendo autoajuda agora? Volta, maluco. Seja o que tu és!

 

(B. B. Palermo)

 


sexta-feira, 16 de maio de 2025

Eu sei de tudo


 

Garotas do prédio ao lado tomam sol
e estendem no varal desejos alucinógenos.
Não ligam pra mim, então lanço ao céu
nuvens de fumaça com aroma suspeito.

Faço pra elas uma oração:
– Que belo dia de sol! parece que a chuva prometida se foi...

Como gostaria de saber o que pensam deste garanhão calejado
que contempla – docemente – o copo pela metade!

Sinto-me péssimo ao tentar uns contatos tímidos,
como se estivesse chegando noutro planeta
e multidões de pequenos centauros coloridos
me observassem, rindo,

Um gigante estranho deu o ar da graça!

Janelas se abrem e se fecham, cortinas sobem, cortinas descem,
meus olhos ficam embaciados diante de seus horizontes.

Observo os cabelos, o movimento dos olhos,
as bocas e o olhar provocador e, ao mesmo tempo, indiferente.

Não sei se deprimo ou se curto sua juventude,
dou de cara com um oceano de cascatas,

potências que seus lindos corpos desencadeiam.

Ah, como eu queria ter a senha de acesso e tudo decifrar,
interagir, deitar porres de orgias ao meu redor.

Não consigo ser como o Velho Safado,
que se fortalecia na solidão –
era o seu maná diário.

As garotinhas se enganam se pensam que em breve
vou repousar nas belas e suaves tardes no jardim dos mortos.

Ainda consigo contar boas histórias.
Acredito em fortes emoções, meus brothers,
aguardo novas proezas, não quero que tudo vire cinzas.

Elas ficarão radiantes ou decepcionadas
se descobrirem os pensamentos que tenho a respeito
de seus corpos modelados por minúsculos shorts e camisetas.

Se imaginei ser um macho predador à moda antiga,
hoje não passo de um prendedor de roupas e também varal
que vai receber as carícias da brisa e do sol
secando suas calcinhas, shortinhos e sutiãs.

Um tanto sensível, mas que já não é tudo aquilo,
prometo poemas sujos que as inspirem a incríveis
experiências sensuais ou, pelo menos, a um ataque de risos.

Eu sei de tudo, enquanto aguardo o milagre:
um dia essa belezinha juvenil vai desaparecer.

Um namorado hoje, outro amanhã e depois outro e mais outro...
Eu sei de tudo, e é por isso que espio por detrás dessas cortinas
tingidas pelo pó.

 

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Não quero mais uma porra de terreno


 

Você venceu, garoto.
Arrancou o diploma da parede,
construiu uma carreira que cheira a sucesso,
encheu a coisa toda de tecnologia,
anda num carro que brilha mais que tua alma

(sei lá, acho que vale uns 200 mil).

Enquanto isso,
tem gente derretendo no inferno –
e não falo da bíblia,
falo da vida como ela é:
ônibus lotado, aluguel vencido, ansiedade crônica,
remédio genérico e café frio.

Você tem psiquiatra,
tem plano de saúde,
tem tênis de corrida com amortecedor,
mas fuma dois maços por dia
e ri igual um defunto ameaçando

dançar.

Eu também tô doente,
mas não preciso construir mais porra de prédio,
só queria coragem
pra abrir o próximo livro
e ver se dentro dele tem um bilhete:
“O sentido da vida tá aqui, seu desgraçado!”.

Hoje sentei num lugar qualquer
e vi a água lambendo umas pedras.
Era só isso:
água e pedra e eu.

Sem meta, sem meta, sem porra de meta.

Por uns segundos
tudo fez sentido.

Depois, lembrei:
meu fígado tá meio fudido,
meus pulmões também,
o coração já não gosta muito de mim.

Um dia tudo isso vai pifar -
os órgãos, os álbuns de família,
as promessas de ano novo,
as mensagens não lidas,
os terrenos,
as construções.

e vai ser bonito, eu prometo que vai!

 

(B. B. Palermo)

terça-feira, 13 de maio de 2025

É Sério, Baby


Eu trago comigo algum consolo, baby,
de ter dançado entre vinis riscados
enquanto o mundo ardia nas entrelinhas

dos jornais.
Me ensinaram paz e amor,
mas nunca me disseram onde doía.

Cresci no colo de Rita, Raul e Belchior –
mestres de uma juventude que não lia

editoriais,
mas entendia o grito engasgado
nas guitarras e nas entrelinhas das canções.
O noticiário? Era só barulho branco
e eu, sem saber, me tornei cúmplice

do silêncio.

A música me salvava, baby,
como salva um náufrago em terra firme,
e eu compreendia a Rainha do Rock
como quem entende uma profecia

em forma de refrão.

Depois vieram os livros e os amores de estação,
as revoltas com hora marcada,
as tardes de domingo cheias de utopia.
E, por um tempo, acreditei:
talvez o mundo ainda coubesse no peito.

Mas escuta esta – olha nos meus olhos:
também fui chamado de ovelha negra da família,
com um certo orgulho, confesso,
como quem carrega no bolso um verso proibido
e sorri porque sabe que ainda arde.

 

(B. B. Palermo)


domingo, 11 de maio de 2025

Um pouco Esquisito

 


Esquisito sai do meio das dunas e vem pela rua e me avista.

Parece afoito e carrega alguma coisa numa sacola.

Lembro duma vez em que me narrou de seu contato com alienígenas na praia do A. Texas.

– Cadelão! – disse-me, ofegante, os olhos arregalados como se tivesse visto o próprio fim do mundo – eles voltaram...

A sacola mais parecia um saco velho encontrado no mar; notei alguma coisa por entre as frestas do zíper.

Já vi coisas estranhas em minha passagem por esse planeta, mas nada parecido com o que ele me mostrou.

– Do que você tá falando, Esquisito? Quem voltou?

Ele olhou por sobre o ombro, como se tivesse certeza

de que estava sendo seguido, e se aproximou tanto que pude sentir o cheiro de maresia

misturado ao de cigarro e álcool e baseado impregnando suas roupas velhas.

Abriu a sacola com cuidado, revelando um objeto que parecia uma concha enorme com uns desenhos indecifráveis.

– Foi o que eles me deixaram, da última vez.

Disseram que era uma chave... mas agora, agora, eles ordenaram

que eu a leve até o Farol – disse-me com a voz trêmula, um quase sussurro. Lá tem um portal. E hoje... hoje é a única noite em que ele se abre!

Engoli em seco. Pensei, que droga esse doido anda usando?!

Já ouvira rumores sobre o Farol – diga-se, o Farol da Solidão, um lugar meio isolado, mas com muita histórias de naufrágios de grandes navios, isso há quase 100 anos.

Segundo os pescadores mais velhos, é um lugar misterioso e, para muitos, até amaldiçoado.

Quero um dia conhecer o Farol da Solidão, mas não ao lado do Esquisito e com uma "chave alienígena nas mãos."

Caramba! E agora?

– Você vai mesmo levar isso lá?

Ele apenas assentiu. Depois, me encarou com uma expressão entre medo e esperança.

– Cadelão... preciso que venha comigo. Eles disseram que só posso entrar se eu não estiver sozinho...

 

Minha última conversa com o maluco girou em torna de sua paranoia a respeito dos cupins que tomaram conta do Litoral Norte.

Onde estavam as autoridades? Hotéis, pousadas, condomínios, casas, todos, todos eram corroídos, humanos reféns dos malditos insetos!

Ninguém faz nada!

Postava nos grupos de Whatts fotos e gravava áudios, desejando desentocar os responsáveis pelo fenômeno.

Diante do silêncio geral, ele desabafava:

– Tá todo mundo de sacanagem!

Quando lá chegamos, notei que o Farol estava vazio, abandonado, como o passado do Esquisito e talvez o meu.

Encostou a chave na base da torre e o vento parou.

Um brilho azul tomou conta da noite. E então, por uma fração de segundo, o impossível pareceu real.

Mas só por uma fração.

O farol voltou ao normal, o vento voltou, a vida voltou... e o Esquisito chorou baixinho.

– Eles me enganaram... ou talvez... me esqueceram.

No retorno, ofereci uns goles de pinga e um cigarro. Aceitou com um sorriso triste.

Desde aquele dia, nunca mais falou dos alienígenas.

Sua vida, agora, gira em torno dos cupins.

Confesso que, às vezes, quando venho meio faceiro do bar à noite, caminhando pela praia, lembro do Farol.

Milagre? Então, um feixe de luz pisca lá no alto – e penso que talvez, só talvez, o Esquisito estivesse com razão o tempo todo.

 

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 8 de maio de 2025

A velha cidade não sai de dentro de você

 

O ar irresponsável juntou-se à fuligem e estão deixando o mundo em polvorosa.

Moços, velhos e crianças se desmontam em tosse e espirros.

Os olhos vermelhos ardem dia e noite.

A luz da sabedoria ilumina mentes brilhantes e soluções são sugeridas.

O prefeito acha tudo brincadeira de criança – a correria em busca de alívio mais parece um carrossel.

Diz que já viu coisa pior.

No parquinho de diversões, o promotor não consegue notificar os responsáveis;

o vereador pede decretação de situação de emergência;

outro sugere a concretagem do incinerador e a manda às favas as leis da física;

o senhor da esquina quer a pronta instalação de um hospital de campanha;

a defesa civil abre inscrições para os voluntários da pá e a remoção dos resíduos.

A cidade tá bombando.

Aqui perto de casa ar e fuligem se uniram ao abandono de lixo e animais mortos

e agora, pra melhorar, há uma caixa de esgoto estourada

que os narizes têm que suportar.

Campo, lavoura e todos os bairros andam queimam de febre, todos tentando não queimar ninguém.

Fogo e água são ingredientes indispensáveis nesse ensaio de fim de mundo

e um filósofo cínico anda à procura de um herói para devolver a paz à colmeia.

Os poetas distribuem metáforas e oficinas de bolinhas de sabão

visando ao controle do movimento corporal e da respiração.

O clube da terceira idade diz ter dançado no trabalho coletivo e os apostadores contumazes organizam rifas e loterias sobre o tempo

que essa novela levará para chegar ao fim.

Os políticos brincam de lets nos eleitores e seguem ‘empunhando’ todo mundo.

Isso tudo acontecendo e o doctor Biza desolado aguardando a anistia.

Só me falta esse ar irresponsável entrar em movimentos.

 

(De um telefonema do Carleone para o Cadelão)


terça-feira, 6 de maio de 2025

Teste vocacional para os meus poemas tristes

 

O cara na praça manda ver nuns exercícios físicos

naqueles aparelhos de merda que as crianças 

fazem de conta que são brinquedos.

Aparelhos estranhos, sujeito estranho.

Fita-me desconfiado,

deve estar sabendo das cagadas que fiz,

nada tão significativo como detonar bombas nucleares

num mundo em que rola um babaca sentido.

Logo adiante avisto uma barraca do Senac

e uma garota me observa e sorri  

e intui que eu preciso fazer um teste vocacional.

Os cabelos e os lábios e os dentes e as sobrancelhas 

sintetizam anos de leituras de horóscopos, 

décadas de tentativas e erros em busca

da melhor resposta sobre o futuro do meu destino.

Tudo é insignificante,

o planeta dá voltas –

seria o eterno retorno?

Dobra a esquina e a reconheço:

é uma senhora que comi anos atrás.

Vacilo, tento virar o rosto mas já é tarde

e ela não me vê ou percebe.

Seus pés enormes parecem duas bocas de serpente

e ameaçam tudo ao redor e não sei pra onde vão

e a quais deuses irão assombrar.

Os ponteiros do relógio digital fazem sua parte e

tudo volta ao normal mas aí passa um vendedor

com aquele carrinho tapado de cobertores

e casacos de lã

e suas rodinhas entoam

poemas tristes.

 

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 2 de maio de 2025

Taxi driver


 


Já fui o “docinho” de muitas beldades,

executivas, professoras, gerentes de lojas e bancos,

garotas de programa, diaristas.

Docinho pra cá e pra lá – se necessário,

24 h por dia.

Prestativo, atencioso, sempre à espera do milagre:

que alguma das deusas me acariciasse

e até sentasse no meu colo.

Vejam bem, que isso fique por conta

da imaginação de vocês.

O “colo” é apenas o eco de meu delírio,

meu salto mortal, o devaneio de que tanto me orgulho.

Confesso que era tímido, e hoje essa verdade

me persegue e dilacera.

Muitos anos depois, a imaginação desgovernou-se

e juntou-se à dona fantasia, e sua alma profética,

nuns beijos e abraços em todo e lugar nenhum.

Cena comum: cogumelos brotam por detrás

da porta do banheiro.

Cogumelos pacíficos?

Cogumelos bandidos, filhos da guerra atômica?

Pesadelos, feito bombas armadas pra detonarem

quando estiver no sono mais profundo?

Soldados corcundas me fuzilando

numa Vietnã qualquer?

Dentro do filme do Scorsese

reencontro um por um esses amores,

de quem fui taxi drive, na Capital.

 

 

As coisas ficaram estranhas quando vi os ovos explodirem

ao serem cozinhados e os feijões permaneciam duros,

mesmo depois de horas no fogo.

Calcinhas e sutiãs penduradas nos varais

de quintais das casas me chamavam e me conduziam

à doce e amarga verdade: as garotas que levei

com meu carro por tantos labirintos e ruas

estão de volta, e desfilam... com suas vozes inconfundíveis,

seus pets, seus livros, espelhos, batons e canções preferidas,

elas são a minha plateia – a plateia de um  poeta só!

O poeta junta esse punhado de ninfas

e desenha em sua parede desbotada e solitária –

misturando todas as tintas possíveis e impossíveis –

a sua mulher ideal.

 

(B. B. Palermo)


A rainha e o lixo

Tava ouvindo Villa-Lobos num desses dias que começam errados e terminam pior. O Yamandu fazia o violão parecer uma mulher nua dançando devag...